Chico Buarque, o menino Mercúrio

Patrícia Helena Dorileo
9 min readJun 18, 2024

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Análise do Mapa Astral de Chico, em homenagem aos seus 80 anos de vida.

No dia 07 de abril de 2023 eu realizei um sonho: vi, ouvi e senti com meus próprios olhos, ouvidos e coração, um deus encarnado e ele se chama Francisco Buarque de Hollanda. Chico é Hermes em carne e osso, isso todo já sabe. Mas constatar com o próprio corpo uma presença que preenche todo um espaço é tão impressionante quanto fascinante.

Como pode tanto talento com a palavra? Com a contação musicada da História de um país feito o nosso como ninguém mais o faz? Com a energia mambembe circulante e espoleta e audaciosa e ainda assim, sensível? Como pode se mesclar entre figuras e vivências como se fossem as suas próprias, porque a criação é verossímil, tal quando dá voz a mulheres de todo tipo? Como pode ter tamanho artimanha arrebatadora de corações?

Eu encontrei a resposta: já era Destino.

Quando Chico nasceu, havia uma legião de astros em Gêmeos: Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Saturno. O Ascendente em Virgem colocou-os na Casa 10 junto ao Meio do Céu, casa e ângulo que versam sobre a visibilidade através dos feitos, a vida pública, fama e reputação, a carreira como sendo o grande palco de sua vida. Falando em feitos e carreira, o Meio-Céu está também no signo duplo, nos termos da Vênus, isto é, respondendo à deusa das artes, da beleza, das vozes afinadas e do próprio sacerdócio, quero dizer, em algum sentido: devoção e altíssimas posições. O MC ainda se encontra entre as estrelas-fixas Capella e Al Hecka. Esta costumeiramente está em mapas de autores de sucesso; a primeira é ainda mais afortunada. A alpha da constelação do Cocheiro [Capella, 23º♊︎], concede bons amigos, afetos, honras, coragem para sustentar o espírito inquisidor, gosto pelo conhecimento e, sobretudo, a dádiva vem à medida dos desejos — o que pede, recebe. Queria um dia lhe perguntar o que ele já pediu na vida e se foi atendido.

Aliás, acho que não se faz necessário passar o currículo do cantor, compositor, violonista, escritor (com dez livros publicados), dramaturgo (cinco peças) e ator brasileiro (aham, em cinco filmes entre as décadas de 70 e 90 ele encena personagens), considerado por muita gente o maior artista vivo da música popular brasileira, né? Pois bem.

Francisco que tanto já fez nesta vida que completa 80 anos neste 19/06/2024, fez tudo sob um corpo-virginiano, digo, com o Ascendente em Virgem. Mercúrio regente do ascendente, coloca-o Mercúrio encarnado. Não basta isso, todo aquele stellium geminiano responde a ele próprio. É uma mente que funciona feito quebra-cabeças e atendendo a uma inventividade desmedida. Cria rimas inesperadas, faz associações aparentemente sem conectividade. É, Mercúrio, também o Almuten Figuris da carta, seu Daemon.

Mercúrio está em Gêmeos, signo que lhe dá domicílio. Significa: fica livre, leve e solto para melhor fazer o que propõe. Quem nasce sob os desígnios mercuriais, orienta-se pelas palavras, são os grandes condutores de inteligência, os que dobram e desdobram a linguagem com a maior facilidade. Quem nasceu para ser Mercúrio Gêmeos assume o domínio da língua, dinamizando-a como quem brinca.

Como na genial “Construção”, na qual re-conta a mesma história trágica & absurda com as mesmas palavras, mas de modo diferente ao invertê-las. Se você vive em um buraco e nunca a escutou nem prestou atenção na letra, faça isso por si. Ou o verdadeiro trava línguas de “Massarandupió: “No mundaréu de areia à beira-mar / De Massarandupió / Em volta da massaranduba-mor / De Massarandupió”. Mas tem que recitar no ritmo e tocando violão! É neste signo que o senhor-da-educação aprende todas as línguas tornando-se poliglota, e assim ganhando a habilidade de misturá-las brilhantemente e criar obra como “Joana Francesa” em que não sabemos se escutamos d’accord ou acorda. É absurda a engenhosidade.

Mercúrio em Gêmeos tomou o bom humor para si. Chico é mesmo bem humorado, e não há entrevista que ele dê que não seja uma delícia de assistir. Momento icônico é ele dizendo que não sabia que na internet todo mundo fala o que bem entender, e quando se deparou pela primeira vez com o setor dos comentários em portais de notícia, leu alguém o chamando de velho bêbado. “Você não vai ficar com raiva, nem ficar triste, nem morrer, se morrer é pior, JÁ VAI TARDE”, diz engasgando no próprio riso.

É o jogador de futebol (não apenas são inúmeros os registros dele com bola nos pés, como criou seu próprio time, o Politheama, cujo nome é o do jogo de botão que tinha na infância), a criança (dá-lhe participação em Os Saltimbancos!), o menino, “O Malandro”, “O meu guri” cuja mãe canta “Chega no morro com carregamento / Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador / Rezo até ele chegar cá no alto / Essa onda de assalto está um horror”, rapaz faceiro que simplifica a vida da esposa quando anuncia os amigos que chegarão para aFeijoada Completa” ao resolver o problema “Mulher, não vá se afobar / Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar / Ponha os pratos no chão e o chão tá posto”.

Mercúrio está grudado numa conjunção partil [exata] à Lua , o luminar feminino, associada à figura da mulher. É a Lua quem representa seus grandes e incontáveis amigos, aliados, cúmplices das artes, pois rege a Casa 11. Agora, Mercúrio tem uma condição interessante que é a do “depende”. Possui qualidades que tornam sua natureza bastante variável, assumindo características do lugar em que se encontra posicionado e dos planetas com quem faz contato. Ou seja, Chico é um Mercúrio que se apropria dos atributos lunares. A capacidade estranha de meio-que-assumir-a-forma-da-mulher é explicada, ainda, pelo fato de Lua e Mercúrio nos termos da Vênus. Meio do Céu também. A Fortuna, em Virgem, idem.

Trocando em miúdos, tem muita gente dando ouvidos ao canto e às palavras adocicadas venusianas neste mapa. Gente, ou pontos/astros, estes, que versam especialmente sobre as motivações buarquianas. É Vênus o planeta mais brilhante do céu noturno (considerando a Lua como luminar, claro). Para o astrólogo Vetius Valens, é quem simboliza as mulheres; e sendo a sacerdotisa, quem responde à Vênus é como ser teu beato.

Li certa entrevista que Chico deu a respeito de sua relação com as mulheres e como assume esse eu lírico com tamanha facilidade. “Há sempre, pra mim, um grande mistério na alma feminina. Eu tenho uma grande curiosidade com relação à mulher, como ela pensa, como ela age. Eu sou um espectador, um voyeur, um vedor das mulheres. Gosto de ver como elas se movem, ver como elas raciocinam, ver como elas reagem diante das coisas. É sempre uma surpresa pra mim. Não acaba. Eu me considero um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala… Virou um lugar-comum por causa das canções. Eu sou um sujeito muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca”.

É a dona de casa que mesmo sabendo das sem-vergonhices do marido, declara-se: “Diz pra eu não ficar sentida / Diz que vai mudar de vida / Pra agradar meu coração // E ao lhe ver assim cansado / Maltrapilho e maltratado / Ainda quis me aborrecer? / Qual o quê! // Logo vou esquentar seu prato / Dou um beijo em seu retrato / E abro os meus braços pra você // Com açúcar, com afeto”. Ou a outra que esbraveja em “Pedaço de Mim”: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.

Para além do romantismo e de uma feminilidade bastante dionisíaca, Chico-Mercúrio, aquele que se mistura à humanidade e acessa a marginalidade, também dá voz às mulheres proscritas como em “Bastidores”, em que narra os sofrimentos de uma artista de cabaré, “Cantei, cantei / Nem sei como eu cantava assim / Só sei que todo o cabaré
Me aplaudiu de pé / Quando cheguei ao fim // Cantei, cantei / Jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis / Bêbados e febris / A se rasgar por mim // Chorei, chorei / Até ficar com dó de mim”.
Ou em “Biscate”, onde estrela uma briga de casal com a estupenda Gal (ou Mônica Salmaso na turnê de 2023 — já disse que tive o privilégio de estar em uma apresentação dela…?).

Não basta sagacidade, acrescente sensibilidade. Dá para empilhar músicas e mais músicas sublimes sob este olhar. Olhos nos olhos, Mar e Lua, Atrás da Porta, Folhetim, Tatuagem, as dezenas de canções com nomes fêmeos, Mulheres de Atenas — a qual é, acima de todas as acusações já feitas, uma denúncia da situação social de 1976.

Claro, Mercúrio governa os músicos (“palmas para todos os instrumentistas!”); é quem disputa através da retórica e tem relação de irmandade com aqueles com quem se identifica, é o camarada, interessa-se pelos assuntos da Humanidade. Não à toa sua música se tornou tão popular em um tempo de tanta dor, ultraje, crime, abuso institucionalizados.

Quando nasceu, ascendia junto a ele [leia-se: conjunto ao ascendente] a estrela Denebola [21º ♍︎], a que destina a um caminho contrário ao status quo social, de quem vai contra convenções ou se torna um pária social, colocando-se em posição de ser perseguido ou tornando-se perseguidor. Chico é considerado um dos maiores compositores de música-de-protesto do mundo. Para driblar a censura precisou elevar o requinte mercurial. Conseguiu, embora tenha sido repetidamente censurado na ditadura militar brasileira, em especial nos primeiros anos; exilou-se.

O regente da Casa 4, Júpiter, na Casa 12, já prenunciava que prisões e/ou expatriações ocorreriam. Aliás, foi preso aos 17 por roubar um carro pra dar um rolê… pois botou as fotos da ficha policial na capa do disco Paratodos em 1993. Júpiter, por sua vez, conecta-se à Vênus em Gêmeos, o que lhe garantiu os alívios em tempos embrutecidos no Amor.

Vênus está combusta, e o Sol, que lhe queima, nos termos de Saturno. Fico pensando em “Assentamento”, quando canta “Quando eu morrer / Que me enterrem / Na beira do chapadão / Contente com minha terra / Cansado de tanta guerra / Crescido de Coração”.

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Mas, que isso esteja bem longe, oh Chico. Neste ano de Lote da Fortuna duplamente em Virgem [revolução solar e progressões secundárias], como consta em seu mapa natal, uma nova honraria se aproxima. Já sabemos que será mais que merecida, justa e digna. Com a Casa 9 profectada, na qual o bonde geminiano se aloca na Casa 6, desejo muita saúde ao nosso mestre-alado, para seguir com sua luz mambembe por estas terras as quais seus pés pisam, seus parágrafos estupefatam e seus versos ecoam.

Por hoje e sempre: obrigada, Chico. Viva seus 80 anos.

inesquecível 07/04/2023 em São Paulo. rara (e ruim) foto que tirei nesta noite.

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Patrícia Helena Dorileo

astróloga, jornalista e um oceano inteiro • astrologer, journalist and an entire ocean.