dia número cem

Patrícia Helena Dorileo
3 min readJun 23, 2020
minha última saída antes do caos foi ao Festival Serrote, mas a última foto é do dia anterior, quando fui a um café hipster

Não sei como é que eu tô vivendo. Talvez porque, no duro, não esteja de verdade. Há 100 dias basicamente existo. Vou levando, sobrevivendo, passando as horas. Quando vi, cheguei ao centésimo dia de isolamento social. Ininterruptos. Sem nenhuma quebra filha da puta da quarentena nem qualquer substância ilícita psicoativa. Óbvio, vontade não faltou de tacar o foda-se e dar uma corrida no Minhocão, parar e observar o céu, o qual não vejo há mais de três meses. Poucas vezes fui tão disciplinada na vida.

Minha consciência com o coletivo precisa estar em paz. Caso contrário, o surto seria dobrado.

Falo surto, mas não surtei. Ainda. E também não sei como. Na verdade eu sei: tenho uma companhia que me salva todos os dias e também me lembro de respirar fundo.

Tive o momento de comer descontroladamente. Depois de jejum, detox. Durante semanas, me afugentei no álcool como se não houvesse amanhã. Agora tento focar o escape escrevendo. Pelo menos é mais saudável. Já me senti a mulher mais feia do mundo. Um dia ou outro me olhei no espelho e pensei — gostosa pacas. Inscrevi-me em dezenas de cursos, não terminei metade deles. Ainda bem que fiz outros. Pensei que estava diminuindo um pouco da fila de livros, mas todo dia novos entram. Ideias mirabolantes passaram pela minha imaginação que tem andado mais fértil que nunca. Não boto fé em quase nenhuma delas, executo muito pouco. Tomei grandes decisões. Procrastinei outras. Vivemos dois eclipses enclausurados em casa sem chance de correr pra qualquer lugar, isso é que é coragem.

Há um desespero para driblar esse inferno coletivo que todo mundo está vivendo. Quase uma autoenganação para convencer o inconsciente de que tudo está minimamente bem, ao menos na minha intimidade. Por mais que eu faça, realize, escreva, leia, aprenda, me excite, ame e seja amada, no fundo há cem dias que parece que só existo. Ou que isso aqui é uma realidade paralela e, lá na outra, somente observo. Talvez seja mesmo.

Veja bem, eu adoro a minha casa. No começo dessa merda toda, eu acreditava que passaria ilesa por causa disso (não tenho problemas mesmo em estar em casa) e apostava que em dois meses estaríamos retomando com segurança à normalidade. As semanas foram se passando, e essa aposta foi sendo jogada cada vez para mais adiante. Não aposto em mais nada. Só sigo existindo.

Não aguento mais vestir um top e tomar sol na micro-sacada. Só meu rosto e meu peito são banhados pela vitamina D. Não aguento mais ter que usar máscara para levar minha cachorra pra mijar na garagem do prédio. Não aguento mais encarar a mesma árvore frondosa na janela da minha sala o tempo inteiro. Não aguento mais fazer aula de yoga por videoconferência. Não aguento mais ficar com ódio de quem não tem o mínimo de responsabilidade social e exibe, sem o menor constrangimento, que segue a vida preocupando-se apenas com a imensidão do próprio umbigo. Não aguento mais ficar com ódio do clã Bolsonaro. Não aguento mais nada disso.

É enlouquecedor não saber quando a gente vai se livrar dessa distopia surrealista extenuante.

Às vezes eu fico longos minutos encarando a árvore frondosa que avizinha minha sala pensando — será que vou sair disso tudo vivendo como imagino que será, num apetite de vida real nunca antes sentido por nenhum ser humano? Ou será que vou ter que reaprender a viver?

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Patrícia Helena Dorileo

astróloga, jornalista e um oceano inteiro • astrologer, journalist and an entire ocean.