Patrícia Helena Dorileo
3 min readMay 17, 2020

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suspiros

São 64 dias enclausurada em casa. Saí umas 4 vezes para ir à feira e ao mercado, e só. Nas últimas semanas nem isso, porque decidi pelo delivery destes serviços. Sinto falta da rua, do sol na pele, de procurar o trajeto já no meio do caminho, dos cheiros urbanos e bucólicos, de encontrar e desencontrar pessoas, de fazer carinho em bicho abandonado. E apesar de, sim, dois meses é um tempão, parece que se passou um ano dentro deste bimestre. E mesmo em 50 metros quadrados tenho construído memórias eternas. Momentos tão efêmeros e quase insignificantes, quanto inesquecíveis.

Neste primeiro período (porque é claro que ainda atravessaremos um longo caminho até o Fim oficial da pandemia ser decretado) fiz meu primeiro pão chiquérrimo. E pelo jeito a população paulistana inteira também está produzindo pães, porque quis fazer o segundo e nunca mais encontrei fermento biológico para comprar. O pão era daqueles de casca dura e miolo fofinho. Acertei em cheio e me achei. São poucas as coisas que me deixam tão feliz quanto acertar na cozinha. Dizem que o primeiro pão a gente nunca esquece, e constato: não mesmo.

Poderei dizer, ainda, que foi durante a pandemia que voltei a escrever em diários; que encontrei a série de comédia mais fenomenal que pode existir e me salvou do surto da saturação (falo de The Office. Ainda vou escrever tudo o que um entretenimento possivelmente banal foi capaz de gerar em mim); que reli Cem Anos de Solidão, preciosidade que conseguiu ter um impacto ainda mais profundo na minha alma; que fui iniciada no Kundalini Reiki e tive despertares avassaladores e transformadores, os quais com certeza ressoarão pelos meus próximos anos; que eu tive um surto de ansiedade e tristeza durante o banho e não conseguia parar de chorar pensando que humanidade tenebrosa estamos representando, escondidos sob o manto do ego, do desafeto, da desigualdade, da antipatia.

No meio destes 64 dias, em uma certa sexta-feira, eu e meu companheiro da vida toda, fizemos uma festa em casa. Nós dois, gin tônica na taça, música dos anos 80 na caixinha de som, e na televisão o Youtube aberto em vídeos “club lights” para dar aquele clima de buatchy. Dançamos até suar mesmo com o clima frio. Quando cansamos, fomos na sacada do quarto e conversamos incontáveis horas sobre tudo. Fiquei tão bêbada que passei um pouco mal, mas quando deitei na cama recomecei a falar ininterruptamente com Arthur que insistia no “dorme aí, Patrícia”. Ao invés de dormir, lembro de forma bastante clara que, naquele momento, informei sem parcimônia que teríamos um filho dali 6 anos, apresentei as razões para tamanho planejamento. Lembro da cara que ele fez. Foi tudo muito bonito e espontâneo. Houve um consenso, também lembro. Tomara que nossas famílias leiam isso aqui.

Intimidade demais a ser compartilhada? Poupei dezenas de detalhes dessa noite, mas, é, talvez seja. É que essa noite, como tantos outros retratos mentais dos últimos 64 dias, têm se tornado eternos em suas simplicidades. Eu me pego recordando desses episódios quarentenescos com certa frequência. Claro que pequenos-grandes instantes sempre tiveram seu valor, eles só estão em mais evidência.

Descobrimos que pandemia é uma merda para todo mundo. De todos os aspectos. Da nossa parte, de gente que não tem muito o que fazer a não ser esperar e permanecer isolado em seu lar, a própria casa pode se tornar uma prisão enlouquecedora. E os comportamentos são absolutamente particulares, dependem de muitos fatores. Por aqui são muitos dias em um só, todos os sentimentos simultâneos. Há momentos terríveis, angustiantes, que dão vontade de sair correndo para um retiro no alto da montanha, no maior estilo Cabo Daciolo. Porém, quando completamos dois meses confinados, de maneira instintiva e despretensiosa comecei a elencar na cabeça o que de memorável tem ficado. Eu não quero esquecer do tamanho da angústia, porque até isso é importante para compreensão no futuro, mas vou dar prioridade às mais singelas, simples, ordinárias e simbólicas lembranças de um momento tão atordoador. Não sei dos outros, e isso pode soar ultra-Poliana, mas são elas, essas lembranças — junto a uma esperança oscilante — que estão me ajudando a segurar a onda.

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Patrícia Helena Dorileo

astróloga, jornalista e um oceano inteiro • astrologer, journalist and an entire ocean.